domingo, 7 de setembro de 2014

Por que a escola deve combater a desigualdade de gênero


Entenda por que é importante combater a desigualdade de gênero e como implementar essas ações na casa e na escola.

Nosso mundo, infelizmente, é cheio de desigualdades. Volta e meia nos deparamos com episódios de racismo, machismo, homofobia ou desigualdade social. E combater essas desigualdades não depende só dos pais, mesmo que eduquemos nossos filhos para não reproduzí-las. Também é importante que outros setores, entre eles a escola, também eduquem para combater as desigualdades.

No que diz respeito às desigualdades de gênero, não é diferente. Por exemplo, um estudo internacional divulgado no início de abril mostra que se as meninas apresentam um desempenho em matemática pior do que os meninos, isso se deve em grande parte à menor confiança que elas têm em si mesmas em relação a essa matéria. Realizado pela Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), o Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa)mostra que "muitas meninas optam por não seguir carreiras em ciência, tecnologia, engenharia e matemática porque elas não têm confiança na sua capacidade para se destacar nessas áreas, apesar de terem as habilidades para fazê-lo". Isso quer dizer que atitudes do cotidiano acabam por desestimular as meninas em matemática e fazem com que elas acreditem que não são tão capazes.

Então se a desigualdade de gênero reflete no dia-a-dia escolar e até nas escolhas profissionais que meninas e meninos fazem, por que não combatê-la? Para Daniela Auad, professora da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e autora do livro "Educar meninas e meninos: relações de gênero na escola" é essencial que isso aconteça. Segundo ela, um passo fundamental é fazer com que todos os envolvidos percebam as desigualdades presentes no ambiente escolar, e não mais as vejam como algo natural. Dentre as sugestões dadas por ela, está a formação de grupos mistos, que misturam meninas e meninos.

"Ao fazer isso, aproxima-se mundos e mistura habilidades. As desigualdades são aprendidas fora dali, mas a escola é um espaço de reprodução. Tanto meninas quanto meninos têm total condição de adquirir conhecimentos, isso é uma questão da nossa humanidade", diz Daniela. Para a pesquisadora, a batalha contra a desigualdade está melhorando lentamente, pois há uma política federal para a promoção da diversidade (como o programa "Gênero e Diversidade na Escola" do Ministério da Educação) e as discussões de gênero começam a aparecer nos livros didáticos.

"Além disso, a questão de gênero começa a aparecer na formação dos professores, embora ainda não o suficiente. Acima de tudo, é necessário um combate a essa desigualdade que não polarize, não essencialize o masculino e o feminino", opina Daniela, que defende que a discussão sobre o assunto esteja na agenda da escola, com espaços específicos para discussão, além das ações cotidianas que visem promover a igualdade.
A pedagoga Edna Telles, por exemplo, promoveu uma atividade desse tipo na escola que coordenava, na periferia de São Paulo. Desde 2011, os cerca de 300 alunos do 1° ao 5° ano do Ensino Fundamental têm um momento exclusivo para as brincadeiras coletivas. O diferente da história é que todos, meninos e meninas, alternam entre o brincar só com os brinquedos "de menina" e com os "de menino".

Como o momento das brincadeiras acontece duas vezes por semana, em cada dia há a exclusividade de um tipo de brinquedo. Em um, as bonecas e brinquedos relacionados ao universo doméstico, como vassouras, fogões e panelas. No outro, os bonecos, carros e jogos de aventura, associados ao universo masculino. As professoras acompanham as brincadeiras e fazem intervenções pontuais, além de responderem dúvidas dos alunos.

"No começo houve muito estranhamento, os meninos perguntavam se a brincadeira era só para meninas e se eles iam ficar de fora. Levou cerca de um mês para as crianças baixarem a resistência, quebrarem essa barreira e brincarem com todos os brinquedos", diz Edna. Segundo a educadora, a resistência dos meninos foi muito maior que a das meninas, e a justificativa era sempre atrelada à sexualidade (eles perguntavam se iam ‘virar gays’ por brincar de boneca). Por isso as intervenções das professoras, que sugerem que eles sejam os pais ou os médicos dos bebês, lembrando-os que pai e mãe cuidam dos filhos.

"As meninas também questionavam porque iam brincar com brinquedos de menino, mas a resistência era menor do que a dos meninos, porque tudo aquilo que é relacionado ao universo feminino é menos valorizado. Diversos preconceitos da sociedade já estavam refletidos ali. Os meninos achavam que iam virar gays ou ‘mulherzinha’ por brincar de boneca", acrescenta Edna. Para a educadora, "a importância da iniciativa é que ela desconstrói estereótipos de gênero e dá às crianças a chance de vivenciar diferentes papeis e descobrirem suas aptidões, pois elas experimentam de tudo e não ficam presas só a um certo tipo de brincadeira, como costuma ser. Elas têm o direito de vivenciar tudo", completa.

A professora e membro do Grupo de Estudos de Gênero, Educação e Cultura Sexual (Edges) da USP, Marília Pinto de Carvalho, no entanto, diz que "hoje o cenário é mais favorável para combater a desigualdade de gênero na escola, mas ainda não vejo um movimento concreto". Opinião reforçada pelo deputado federal Jean Wyllys, titular da Comissão de Direitos Humanos e Minorias e membro da Comissão Especial da Câmara responsável pelo Plano Nacional de Educação (PNE). Para Jean, "a escola não atua, como instituição, na transformação crítica dos alunos. Não tem nada voltado à preparação para uma vida em uma sociedade cada vez mais diversa. A falta destes programas é que, por exemplo, impede a superação do bullying. E é a escola o primeiro ambiente de sociabilização das crianças e adolescentes, onde passam boa parte dos seus dias, e onde, pela primeira vez, têm contato com pessoas que não são de seu círculo de amizade ou de parentesco".

Marília Pinto de Carvalho acrescenta que não dá para depositar na escola a responsabilidade por toda a mudança. "Embora a escola reproduza a desigualdade e tenha a capacidade de transformar, ela não pode ser o único agente nessa mudança. Tem de vir dos pais, da sociedade como um todo. E principalmente: não pode fazer esse processo de maneira impositiva: isso é um trabalho que envolve valores, então tem de ser um trabalho junto às famílias. A escola tem de ouvir e propor a discussão a respeito, não só criar regras", defende.
Já a professora Daniela Auad frisa que não é só porque os pais possam ter resistências que o assunto não deva ser discutido na escola. "Há pais que não gostam da ideia da escola usar uniforme, mas a escola deixa de pedir uniforme por causa disso? Não. Há uma série de coisas que a escola defende e os pais não, e porque no quesito discriminação de gênero ela tem que ceder? Por que as crianças são estimuladas a pensar em algumas coisas mas não em relação a isso? Os pais não podem ser álibi para não tratar do assunto desigualdade".

A polêmica em torno do Plano Nacional de Educação

A questão da desigualdade de gênero ganhou holofotes recentemente por ser um dos pontos mais polêmicos do Plano Nacional de Educação (PNE), que define as diretrizes da Educação nos próximos 10 anos. Depois de mais de 3 anos de tramitação, o PNE foi aprovado, não sem antes ter seu texto alterado na Câmara dos Deputados, trocando a especificação das desigualdades ‘racial, regional, de gênero e orientação sexual’ para a "erradicação de toda forma de discriminação".

Edna Telles, a pedagoga que coordenou a atividade de brincadeiras coletivas entre meninos e meninas descrita nessa reportagem, considerou a medida um retrocesso e um desrespeito aos movimentos sociais, em uma tentativa de impor um discurso conservador. "É uma pena, um absurdo. Agora, para garantir o combate à desigualdade entre os gêneros temos de achar as brechas na lei".


O deputado Jean Wyllys, que participou ativamente da tramitação do PNE, também critica duramente a retirada das discriminações específicas. "Deixar de tratar as questões de gênero é permitir que as mulheres continuem sendo educadas a assumir uma posição subalterna, destinada ao lar, aos filhos ou à marginalização social. É permitir que os homens sejam educados para exacerbação da virilidade, mesmo que isto induza à violência escolar. Nascem aí toda sorte de discriminações que, por vezes, levam à situações de agressão e morte, ao suicídio e ao isolamento social. Essa medida acaba por perpetuar uma situação confortável, onde homossexuais são agredidos e têm seus direitos negados, mulheres têm sua independência sistematicamente tutelada e reduzida a algo inferior à liberdade masculina, entre outras", diz. Assim como Edna, Jean também defende que a partir de agora é preciso construir políticas públicas no Legislativo ou contar com a boa vontade do Executivo em implementar estas políticas por conta própria.01/09/2014 11:46
Texto Nana Soares

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